sábado, 6 de setembro de 2014

MONEY, MONEY, MONEY

(Richard Koo, Nomura Research Institute)


A blogosfera económica tem estado focada nos tempos mais recentes numa espécie de obsessão de tratamento das questões monetárias e os jornais económicos mais especializados também têm dedicado ao tema uma atenção crescente. Eu próprio, que mantive sempre em relação ao tema uma distância prudente, já que no quadro atual da sofisticação dos sistemas bancário e financeiro o conhecimento dos mecanismos práticos e concretos que os animam exige proximidade a esses mecanismos, dou frequentemente comigo a queimar pestanas com leituras adicionais, algumas delas já perdidas na memória de juventude. O Treatise on Money de J.M. Keynes aguarda expectante na estante mais próxima da secretária o meu impulso de leitura seletiva e até já regressei a algumas leituras de Milton Friedman às quais pensei nunca mais voltar.
Mas os tempos estão para este paradoxo: não há talvez conceito e matéria mais complexa em economia e, ainda assim, no rescaldo da Grande Recessão (que alguns como Bradford DeLong avisam que pode passar a ser designada de a Maior Depressão) a sua invocação é hoje permanente. E os esforços dos Bancos Centrais (com o FED – USA e o BCE à cabeça, por razões óbvias) para afinar os mecanismos da política monetária tendem a intensificar a curiosidade aos mais leigos. Ainda esta semana o novo Draghi – ataque não pode deixar de colocar o cidadão comum a interrogar-se sobre matéria aparentemente tão distante.
Grande parte da interrogação que o tema suscita decorre de uma distinção, talvez subtil para o cidadão comum, mas que faz parte da iniciação de qualquer estudante em economia. Os dois conceitos em confronto são o de base monetária (B) e o de oferta de moeda (M), acontecendo que para complicar o conceito de oferta de moeda (a moeda que é colocada à disposição da economia) pode ser definida em função de vários agregados monetários, do mais simples ao mais complexo e cuja utilização depende em grande medida da sofisticação dos sistemas bancário e financeiro, o qual como se sabe e apesar da globalização financeira continua a depender muito do contexto institucional de cada país.
Sem querer ser enfadonho e demasiado técnico, a base monetária é constituída pelo conjunto da moeda em circulação (C) e pelas reservas que os bancos depositam nos bancos centrais (R). Já a oferta de moeda é composta por um elemento comum (a moeda em circulação C) e pelo total dos depósitos (D) que particulares e empresas depositam nos bancos. B e M são diferentes e pode ser provado algebricamente que a oferta de moeda M depende de três fatores, a própria base monetária, a relação entre moeda em circulação e os depósitos de particulares e empresas nos bancos (C/D) e a relação entre as reservas que os bancos realizam nos bancos centrais e os depósitos aos quais têm de assegurar convertibilidade (R/D).
Para quê toda esta preocupação analítica? Na sequência das respostas dos bancos centrais à crise financeira, com relevo para o “quantitative easing” já aqui neste blogue repetidas vezes mencionado (que finalmente o BCE parece ter criado condições internas para começar a realizar), alguns economistas (com relevo para o economista japonês do Banco Nomura Richard Koo) puseram em evidência que essas operações aumentaram significativamente a base monetária das principais economias desenvolvidas, sem contudo lograrem aumentar efetivamente a oferta de moeda M colocada à disposição das economias. O cidadão comum compreendeu este fenómeno através da ideia de que os governos e bancos centrais decidiram oferecer moeda às economias através do sistema bancário, mas que essa ajuda não se reconverteu em crédito, ou seja não chegou à economia real, sobretudo às PME. Alguns bancos centrais bem tentaram fazer descer as reservas (depósitos) dos bancos comerciais nos bancos centrais (R) descendo acentuadamente os benefícios desse parqueamento de dinheiro, mas nada feito, as duas variáveis B e M continuaram a distanciar-se e o cidadão comum à procura de crédito cada vez mais interrogado sobre a não satisfação das suas necessidades.


Uma razão para que esta divergência tenha acontecido deveu-se à própria dimensão financeira da crise. Ou seja, registou-se o absurdo paradoxal de, simultaneamente, procurar injetar-se dinheiro nas economias através do sistema bancário e exigir entretanto a estes que consertassem as suas desconjuntadas casas, corrigindo imparidades, aumentando rácios de cobertura e tornando os respetivos balanços mais saudáveis. Há rumores que os novos testes de stress à banca europeia cujos resultados são esperados para outubro-novembro trarão algumas surpresas negativas, obrigando algumas instituições bancárias a novas recapitalizações, reduzindo inevitavelmente por essa via a massa de recursos libertados para o crédito. Quer isto significar que o crédito bancário é essencial para que a base monetária B se transforme em oferta de moeda M à economia. Afinal, atribuir pela banca um crédito a alguém significa abrir um depósito nesse banco a favor desse alguém.
Além disto, há oferta e procura. Não há oferta de crédito sem procura do mesmo. Ora, as condições recessivas da economia podem reduzir a procura de crédito na economia, enquanto o investimento não despertar e com ele as necessidades do seu financiamento.
Com toda esta digressão em torno da base monetária e da oferta de moeda, compreende-se que todo o alarmismo dos falcões da inflação, baseado na ideia de que o aumento desmesurado da base monetária B levará a um aumento de preços, não resiste a um simples alerta que faz parte à iniciação em economia: aumentar a base monetária B não significa necessariamente aumentar M. Dirá o leitor comum que algo é incompreensível quando se cavalga erradamente uma diferença básica para um estudante recém-iniciado na economia. Aliás, essa preocupação doentia está na base da evidência hoje clara de que a Grande Recessão de 2007-2008 apresenta uma estranha especificidade: os governos revelaram um zelo precipitado em fazer descer os défices públicos primários, zelo esse que na zona euro deu origem ao que vai ficar na história da política macroeconómica como um erro COLOSSAL (o pacto fiscal ou orçamental). Simon Wren-Lewis tem aqui uma boa iniciação ao tema.

P.S. Não meti baixa para compensar a ausência de ontem, mas vou associar-me com prazer à felicidade da Eduarda e do Ricardo, apesar deste sábado instável e molhado.

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