domingo, 23 de agosto de 2015

AS VIRTUDES DO DEBATE EM ECONOMIA

(Richard P. Feynman)
(Paul Romer)


(Um pouco técnico: ou como o conceito de Mathiness introduzido por Paul Romer revolucionou o debate de ideias e paradigmas na macroeconomia)

Já há alguns dias que ando às voltas com a ideia de escrever um post sobre esta matéria, embora se trate de questões que ficariam melhor alinhadas num blogue centrado nas questões da “ciência” económica, o que o Interesse Privado, Ação Pública efetivamente não é, a não ser nas margens de relacionamento com o tema público-privado.

Oportunamente, dei aqui conta várias vezes do ressurgimento público de um economista cuja obra a equipa de crescimento económico da FEP em que estava integrado ajudou a divulgar em Portugal, sobretudo no que a economia das ideias representava de futuro para a teoria do crescimento económico. Depois de um interregno público em que Paul Romer se concentrou em negócios privados de tecnologias educativas, percorreu o mundo, sobretudo o asiático, com a sua ideia de projeto das Charter Cities e ter acostado a um instituto de estudos urbanos da Universidade de Nova Iorque, o Marron Institute of Urban Management, em que é responsável pelo Urbanization Project na Leonard N. Stern School of Business, em janeiro de 2015 o economista regressou ao encontro nacional da American Economic Association com um pequeno paper que haveria de marcar o debate essencialmente macroeconómico este ano. O paper chamava-se “Mathiness in the Theory of Economic Growth e, com a sua publicação, Romer iniciou uma atividade regular no seu blogue, rapidamente agitando a riquíssima blogosfera americana, envolvendo os bloggers de maior reputação e audiência, Bradford DeLong, Paul Krugman, Robert Waldmann (Angry Bear e Asymptotically we are all dead), Mark Thomas (Economist’s View), David Glassner (Uneasy Money) e outros

O conceito de mathiness é de difícil tradução para português, talvez “matematite” ou “matematicidade” possam encontrar no português inventivo algo que reproduza o sentido da expressão de Romer que, devemo-lo recordar, é um daqueles economistas que sustenta que sem o recurso à matemática a economia não pode aspirar ao estatuto da ciência. A matemática é a via mais sólida para comunicar com clareza, concisão e efetividade ideias. O que torna mais estranho a utilização de uma expressão que parece gozar com o uso indevido da matemática. O que leva então um economista matemático, de sólida formação em engenharia, a regressar ao palco do debate público, atirando-se inicialmente a dois modelos de crescimento (McGrattan e Prescott e Lucas e Moll) pelo seu uso indevido da matemática e da modelização? A “mathiness” é para Romer uma mistura de palavras e de símbolos matemáticos que, em vez de conduzir a relações bem determinadas e inequívocas, abre um vasto campo à derrapagem das ideias e inclusivamente à desonestidade intelectual.

Para além dos sucessivos posts no seu blogue em que a ideia foi desenvolvida, aliás em debate franco e polido com alguns dos bloggers atrás mencionados, Romer concedeu recentemente uma curta entrevista ao Real Time Economics do Wall Street Journal no qual apresenta os fundamentos para a decisão de aparecer em força na conferência anual da American Economic Association: “uma das coisas que mais me impressionou foi a perceção do reduzido progresso observado em relação às mais importantes questões da economia das ideias”. Partindo desta simples observação, Romer conclui que do ponto de vista científico algo de errado se tinha passado e talvez houvesse razões objetivas para que o progresso científico não tivesse sido estimulado. É aqui que vai buscar a utilização indevida da matemática e o campo aberto à desonestidade intelectual que impediu a consolidação do pioneirismo das ideias de Romer de que a economia das ideias obriga a uma modelização da concorrência imperfeita (monopólio, concorrência monopolista ou oligopólio) e não à tentativa desesperada de Robert Lucas (curiosamente supervisor da tese de doutoramento de Romer na universidade de Chicago) de desenvolver a economia das ideias como uma subárea do capital humano modelizável em concorrência perfeita.

Para sustentar a sua posição de que a matemática tem aberto campo à desonestidade intelectual em economia, Romer precisava de se munir de critérios de integridade científica para ficar ileso em tão violenta batalha. Fazendo jus às origens da sua própria formação, Romer vai buscar ao físico Richard P. Feynman (não confundir com Richard Feynman) o conceito de integridade científica. Recordo que Feynman é autor de um dos mais violentos ataques à pseudo-cientificidade das ciências sociais: “Devido ao sucesso da ciência, há um tipo de pseudo-ciência. A ciência social é um exemplo de ciência que não é ciência. Ela segue as formas. Recolhe dados, faz aquilo e aqueloutro, mas não obtém leis, não descobriu nada. Não conseguiram nada ainda. Pode ser que algum dia encontrem alguma coisa. Mas ainda não está muito desenvolvida” (entrevista à BBC de 1981). Vale a pena citar o conceito de integridade científica de Feynman que tanto orienta a contundente crítica de Romer:

É um princípio de integridade científica, um princípio de pensamento científico que corresponde a um tipo de honestidade absoluta – um tipo de respeito pelo que está a montante das nossas conclusões. Por exemplo, se realizarmos uma dada experiência, devemos reportar tudo que em nosso entender pode tornar essa experiência não válida –não apenas o que pensamos que está certo nessa experiência.: outras causas que podem explicar os resultados; e coisas que pensamos ter eliminado através de outras experiências e como é que aconteceram – de modo a tornar seguro que outros possam confirmar que foram eliminadas.

Pormenores que possam suscitar dúvidas sobre a nossa interpretação devem ser fornecidos, se os conhecermos. Devemos fazer o melhor que pudermos – se conhecermos alguma coisa de errado ou possivelmente errado para o explicar. Se elaborarmos uma teoria, por exemplo e a aconselharmos então devemos colocar na mesa todos os factos que a contrariam, tais como aqueles que a podem infirmar. Há ainda um problema mais subtil. Quando se reúnem muitas ideias para poder elaborar uma teoria, devemos estar seguros, quando explicamos o que é que a teoria explica, que essas coisas que confirmam a teoria não são apenas as coisas que nos conduziram à ideia da teoria; mas que essa teoria acabada traz alguma coisa de adicional de verdadeiro”.
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Romer está sobretudo preocupado pelo facto da economia ter implicações diretas na política macroeconómica (policy) e isso poder inibir a possibilidade de um debate científico não apaixonado, de espírito aberto, sobretudo num contexto em que as posições políticas se extremaram não apenas nos EUA, mas também por toda a Europa em função da conflitualidade que a gestão da crise veio introduzir no plano político e no plano das ideias económicas. Ele entende que o facto de certas ideias económicas serem o suporte de posições políticas bem sólidas e impenetráveis está a arruinar a capacidade dos jovens investigadores de questionar os paradigmas representados pelos seus supervisores de investigação, sobretudo se estes últimos não respeitarem os princípios da integridade científica de Feynman e se aqueles não tiverem a rebeldia necessária para preferirem a incomodidade à cautela, a rebeldia ao seguidismo.

E as ideias são como as cerejas. Por isso, Romer suscitou indiretamente o revisitar da grande cisão observada na macroeconomia contemporânea quando a macroeconomia keynesiana foi desafiada pelos chamados Novos Clássicos, cujo manifesto “After Keynesian Macroeconomics” de 1989 (Robert Lucas Jr. E Thomas Sargent) procurava demonstrar no quadro das chamadas expectativas racionais a dispensabilidade da política de intervenção keynesiana. Esta cisão que é conhecida na gíria pela divisão de águas entre a “freshwater e a saltwater economics” teve no seu seio economistas tão representativos como Robert Solow que sempre se opôs à pretenda utilidade do conceito de expectativas racionais.

Não há espaço neste post para analisar de perto o que foi e o que poderia ter sido a reação de Solow ao manifesto dos Novos Clássicos e consequentemente a questão académica se a divisão de águas poderia ter sido evitada, com benefícios óbvios para a progressão da ciência económica no quadro de um paradigma a aprofundar em termos comuns.

Mas é bom que se diga que Romer é cientificamente íntegro ao considerar que houve outros momentos, para além do manifesto de Lucas e Sargent, em que outras trajetórias promissoras de pensamento económico tiveram o seu desenvolvimento inibido devido às suas consequências sobre o paradigma de intervenção pública que tenderiam a provocar. De acordo com os contributos do próprio Romer parece ser essa a razão da tentativa desesperada de consagrar o desenvolvimento da economia das ideias no âmbito de modelos de concorrência. Com essa tentativa, procura-se desacreditar a intervenção pública anti-trust que na boa lógica de Chamberlain as situações de monopólio, de concorrência monopolista e oligopólio implicam, bem como os incentivos públicos à inovação.

E direi eu é o que se passa hoje com a defesa desesperada do paradigma da consolidação fiscal e com ela a desvalorização absoluta de demonstrações sólidas de que, em condições de zero lower bound e perspetivas de declínio das taxas de juro a longo prazo, “debt is good”. A consagração política do pacto orçamental na União Europeia, com o beneplácito da social-democracia europeia, tenderá a assustar e a inibir jovens investigadores de contrariar mestres e supervisores que alinham por essa posição.

David Glasner no Uneasy Money acrescenta uma posição na qual me revejo bastante:

A minha própria perspetiva é que estar pessoal ou emocionalmente ligado a uma dada teoria, seja por motivos religiosos, ideológicos ou por quaisquer outras razões, não é necessariamente uma coisa má enquanto houver mecanismos sociais que possibilitem que outros cientistas com outras perspetivas científicas sejam escutados. Se esses mecanismos existirem, a necessidade da integridade científica de Feynman será minimizada, já que os lapsos individuais de integridade serão expostos e remediados pelo criticismo de outros cientistas; o progresso científico é possível mesmo que os cientistas não adiram aos princípios de Feynman e mantenham a sua fé nas suas teorias apesar das evidências contraditórias. Mas, como sugerirei de seguida, há razões para duvidar que esses mecanismos estejam a operar para disciplinar – não eliminar, apenas disciplinar, dúbias teorizações económicas.”

Nem sempre de facto estão criadas as condições para que um estudante de doutoramento descubra o bug de uma folha de EXCEL que concentrava a pseudo-verdade de que existe um limiar de peso de dívida pública no PIB a partir do qual a dívida é nociva ao crescimento económico.

É por estas razões que tenho algum desprezo e azedume intelectual pelos professores que tive em disciplinas de teoria económica na Faculdade de Economia do Porto. São responsáveis por anos de vida perdidos sobretudo a trabalhar nas aberturas de pensamento que naquela Escola estavam fechadas. Creio estar de consciência tranquila por ter proporcionado como professor aos meus alunos um outro clima não dogmático de abertura intelectual. Já não é pouco nos tempos que correm.

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