quarta-feira, 5 de outubro de 2016

ÁGUA MOLE EM PEDRA DURA …




(E subitamente o tema da desigualdade emerge no discurso do FMI, resta saber se para consolar más consciências ou para ter impacto em programas futuros de ajustamento)

Todos os leitores deste blogue já compreenderam que a facilidade ou dificuldade com que o pensamento económico se transmite à decisão política, seja ela de países, ou de instituições responsáveis ou com intervenção na regulação da economia mundial, constitui um tema de eleição das minhas preocupações recorrentes. Assim é.

Por outro lado, o tema da relação entre capitalismo e desigualdade tem vindo sistemática e regularmente a ser discutido neste blogue como um domínio no âmbito do qual se jogará muito, em meu entender, do eventual e desejável ressurgimento da social-democracia e do socialismo dito democrático. Como sabem, há os que defendem que o capitalismo será sempre promotor de desigualdade e que, por isso, a desigualdade deve ser considerada como um dano colateral desse sistema, inevitável e incontornável. O pensamento reformista que inspira este blogue não sustenta essa posição. Existe uma diferença que se designa de as variedades do capitalismo e algumas dessas variedades mostram que é possível aspirar e concretizar modelos de crescimento e de alocação de recursos na economia de mercado de pendor mais distributivo. Temos vindo ainda a defender que a desigualdade é fruto de escolhas políticas no âmbito dessas variedades de capitalismo, sendo por isso matéria de opções políticas. Não ignoramos que a investigação de Piketty mostrou que os períodos em que o capitalismo gerou desigualdade transcendem claramente aqueles em que o crescimento foi predominantemente distributivo. Mas essa conclusão decorrente dos trabalhos do inspirado e hoje popular economista francês só mostra precisamente o que queremos demonstrar, ou seja, que a desigualdade é fruto de opções de política económica e de políticas públicas em geral.

Regressando ao tema da transferência do conhecimento em economia para a decisão política, é novidade relativa a progressiva atenção que escritos económicos produzidos por investigação realizada entre os muros da instituição FMI têm dedicado ao tema da desigualdade. Sabemos que, tal como acontece noutras instituições que acolhem investigação económica, estão sempre a lembrar-nos que os resultados obtidos não comprometem a instituição de acolhimento mas apenas os seus autores. Mas há sinais de que a atenção ao tema da desigualdade já ultrapassou os muros da investigação paga por essas instituições. O FMI é um bom exemplo dessa tendência. A imagem que abre este post põe na boca de Christine Lagarde palavras que decorrem diretamente de resultados de investigação muito recente, apadrinhada pela instituição. Bem sei que Madame Lagarde não é propriamente um modelo de verticalidade e que não é propriamente uma revolucionária das ideias de mudança nas instituições. Mas precisamente por isso é que as suas palavras adquirem outro significado. Lagarde é seguramente uma calculista, alguém que mede bem o peso dos efeitos das suas palavras. Ora, sendo assim, a sua alusão à ideia de que a desigualdade penaliza a sustentabilidade do crescimento resultará de uma avaliação que não será meramente circunstancial, do tipo palavrinhas a abater para sossegar as hostes e travar a animosidade crescente contra a instituição. Além disso, são palavras que decorrem em grande medida de investigação acolhida no seio da própria investigação. Veja-se aqui a síntese do economista chefe do FMI para a área do desenvolvimento económico, Prakash Loungani, que bem documenta a relevância dessa fonte.

É um facto que Lagarde ao falar de sustentabilidade do crescimento está a pensar em tendências a longo prazo. Mas todos sabemos que o longo prazo não se constrói no vazio. O longo prazo é uma sucessão de curtos prazos. E, por isso, a invocação do tema da desigualdade coloca a instituição FMI em dificuldades. Por outras palavras, os programas de ajustamento, que visam corrigir, sabemos, situações de curto prazo, não poderão passar ao de leve pela penalização que desigualdade impõe ao crescimento. É que esses programas de ajustamento (veja-se o que aconteceu em Portugal) promovem claramente o crescimento da desigualdade. Assim sendo, o FMI terá de reconhecer que os seus programas de ajustamento estão a colocar em risco a sustentabilidade futura do crescimento económico e isso é entrar de cabeça no furação da contradição.

É aí precisamente que quero chegar. Não quero admitir que a alusão de Lagarde à desigualdade esteja ao mesmo nível das suas cogitações sobre os últimos trends de moda que inspiram a sua postura de extrema elegância. Trazer para ribalta o tema da desigualdade e da sua penalização do crescimento a longo prazo implicará a prazo uma completa revisão dos programas de ajustamento macroeconómico, o que não significa que tal se produza a curto prazo. A disseminação das ideias no sentido de alterar paradigmas estabilizados de intervenção é lenta. Mas água mole … ou pelo menos é assim que um reformista convicto deve pensar.

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