sexta-feira, 14 de outubro de 2016

ENSINO PROFISSIONAL E PERCURSOS EDUCATIVOS




(Na linha de reflexões recentes sobre esta matéria, estarei hoje no Congresso Internacional Transformações e (in) consistências das dinâmicas educativas, na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Coimbra para uma intervenção sobre o tema)


Uma perspetiva de outsider interessado sobre o tema

Queria começar por contextualizar a minha intervenção. Não sou seguramente o que segundo o léxico deste congresso internacional se poderia designar por especialista dos temas da educação. Desde a minha aposentação da Faculdade de Economia do Porto, não estou integrado na comunidade de práticas que trabalha sobre e em torno do tema. Sou antes um observador exterior dos rumos da educação, mas um outsider interessado sobretudo na perspetiva do desenvolvimento económico e social do país e dos seus principais territórios. Nesta perspetiva de outsider interessado, é para mim relevante a relação ambivalente que se estabelece entre a edução e os rumos do desenvolvimento do país: em que medida a melhoria das qualificações da população portuguesa e dos seus ativos pode contribuir para o desenvolvimento do país e em que medida os padrões deste último impactam a procura e a oferta de formação. Esta relação ambivalente atravessa decisivamente a minha prática e a minha própria formação como economista do desenvolvimento e do território.

No âmbito da primeira dimensão, importa ter em conta que a relação entre dotação de capital humano e crescimento económico não é automática, uma coisa é existir uma correlação relativamente robusta entre stocks de educação secundária e superior e produto per capita, outra coisa bem diferente é essa relação significar causalidade também robusta. O que quero dizer é que essa relação tem mediações importantes, talvez as mais relevantes sendo as de natureza organizacional.

No âmbito da segunda dimensão, interessa-me sobretudo a questão do matching sempre complexo entre a oferta e a procura de formação no mundo dinâmico do desenvolvimento. Nesta dimensão importa sobretudo discutir que estratégia devemos assumir: se uma postura reativa, reagindo com o menor lag temporal possível às carências de qualificações e competências que o desenvolvimento empresarial e global vai exigindo, através nomeadamente da engenharia institucional mais apropriada para o fazer; ou se ousamos uma postura mais prospetiva, antecipando com risco as carências de qualificações e competências que irão manifestar-se no futuro próximo.

É nesta perspetiva que chego ao tema deste painel, Ensino Profissional e Diversidade de Percursos Educativos, ele interessa-me nessa dimensão mais lata das relações entre educação e desenvolvimento, embora como Presidente da QP e como alguém que trabalha no planeamento de políticas públicas, a minha equipa esteja também envolvida na chamada prospetiva territorializada das qualificações de tipo intermédio (nível IV) em trabalhos que têm envolvido a ANQEP e algumas CIM do território nacional.

Não vou aqui contar-vos a história dos avanços e recuos do ensino profissional e do seu contributo para a diversidade de percursos educativos e para a redução dos índices de abandono e insucesso escolares (ontem mais aquele, hoje mais este último). Basta-me considerar que esses avanços e recuos acontecem num contexto em que o país vai procurando compensar a retórica normativa da legislação que aponta para o aumento da escolaridade obrigatória com realizações que aproximem decisivamente os índices reais das promessas legislativas dessa retórica normativa. Claro que a retórica normativa não é um produto exclusivo das políticas de educação em Portugal. Se projetássemos a situação do país em termos do seu articulado jurídico, estaríamos seguramente melhor posicionados em muitos domínios do que realmente é a nossa situação relativa face aos outros, na Europa e no mundo.

Existe um mito (saudoso) em torno do ensino técnico-profissional e das qualificações de tipo intermédio?

Nas minhas digressões e trabalhos de planeamento, há seguramente poucas reuniões com empregadores ou organizações que os representem em que não se fale do capital perdido com a precoce destruição do ensino técnico-profissional observada em Portugal, numa espécie de trauma não resolvido gerado pela transformação democrática. Talvez exista esse mito e aparentemente ele não desapareceu do mercado de trabalho. Não vou discutir essa questão. É para mim suficiente reconhecer que, mesmo que não tivesse sido operada essa eliminação, o técnico-profissional que hoje existiria teria que ser necessariamente adaptado ao contexto económico e social dos dias de hoje, pois não é seguro que a mobilidade social ascendente do técnico-profissional de ontem fosse uma certeza hoje com os problemas de mobilidade social ascendente hoje manifestados, seja entre os que são apanhados pela armadilha da pobreza, seja os que na sempre difícil tarefa de quantificar a classe média têm experimentado sérios reveses de progressão social.

Não raras vezes, aqueles empregadores que clamam pelas virtualidades do passado do técnico-profissional são os que preferem contratar um jovem licenciado que aceita rebaixar a sua remuneração para obter o desejado emprego do que recrutar um diplomado pelo ensino profissional que tanto apreciam.

Precisamos urgentemente de uma estratégia de transição para consolidar a afirmação equitativa e inclusiva do ensino profissional

A história das frustrações nacionais está cheia de consensos sobre objetivos estratégicos que afinal não deram em nada. Há quem diga que isso se deve a estarmos perante falsos consensos. No meu entender, não diria assim. Trata-se, outrossim, de consensos incompletos. Há consenso sobre os objetivos estratégicos, mas não os há quanto às transformações que é necessário realizar para lá chegar a partir da sempre impura (e por vezes desajeitada situação de partida). Ou seja, em termos mais claros, não há consenso sobre a estratégia de transição a assumir para lograr o cumprimento dos objetivos.

Exemplifiquemos.

Não é difícil chegarmos a um vasto consenso democrático sobre a necessidade de valorizar o ensino profissional, que até pode acolher os que alimentam o mito saudoso do técnico-profissional do antigamente. O ensino profissional corresponde a um objetivo louvável de diversificação de percursos educativos conducentes a uma maior empregabilidade de jovens, respondendo simultaneamente a necessidades de empregadores que procuram qualificações não oferecidas pela formação secundária regular, não vocacional, e que não requerem formações superiores universitárias ou politécnicas. No entanto, a sua consolidação, envolvendo designadamente a sua generalização nas escolas regulares do ensino público, não arranca de uma tábua rasa, mas sim de uma situação de partida imperfeita, impura, que é necessário transformar para se atingir o referido objetivo.

E há uma imensidade de situações que tornam essa transformação não necessariamente consensual:


  • Foi assumido que ensino profissional (com dupla certificação) oferecido pelas escolas do sistema público coexistiria com as Escolas Profissionais, de constituição anterior e criadas no âmbito de dinâmicas da sociedade civil local: poderia não ter sido esta a orientação e, por exemplo, ter sido assumido o desenvolvimento possível das Escolas Profissionais;
  • Desde o princípio que foi assumido que o reforço dos cursos profissionais teria de coexistir com a continuidade de presença de outras modalidades de formação vocacional com dupla certificação, como por exemplo o Sistema de Aprendizagem de iniciativa do IEFP: sabemos como é historicamente “fácil” (passe a ironia) a interação e o diálogo institucional entre os serviços de educação e de emprego;

  • Não está ainda totalmente resolvido se o ensino profissional pode aspirar a estudos de continuidade no ensino superior, universitário ou politécnico, ou se, pelo contrário, será atribuída prioridade à formação de um ensino superior de curta duração (TeSP) para assegurar essa continuidade: as hesitações com que os TeSP foram criados e a grande confusão quanto aos seus objetivos permitem inferir que essa questão não está estabilizada;

  • Outros admitiram a possibilidade de constituição de um sistema dual, à alemã, como se um sistema dessa natureza pudesse ser criado a partir do nada;

  • E para incendiar mais esta questão o governo anterior, através dos hoje defuntos Cursos Vocacionais, procurou estabelecer a diferença entre percursos profissionais em idades demasiado precoces.


Sem comentários:

Enviar um comentário