domingo, 16 de outubro de 2016

O ORÇAMENTO




(O peso do Orçamento no debate político em Portugal é asfixiante e não é um indicador de saúde confortável do estado das coisas no país, embora face à hipocrisia reinante e à perplexidade da direita que está longe de uma maioria que lhe permita o acesso ao poder se possa dizer que o governo foi além das expectativas)


Por entre o ruído que a preparação na praça pública (o Bloco de Esquerda ferve de entusiasmo e frenesim com a divulgação pública dos seus contributos para os resultados da negociação, atenção que o frenesim pega-se e é depois difícil passar para fora dos círculos da governação) e a apresentação do Orçamento suscitaram há uma dimensão que predomina sobre todas as outras. A direita na oposição, o jornalismo que com ela se identifica, designadamente o económico, e os comentadores e jornalistas que nunca engoliram a decisão de António Costa em gerar o novo acordo parlamentar sempre viram na preparação do orçamento para 2017 o momento crucial para as contradições internas e externas gerarem a esperada implosão. Ao nível interno, sempre esperaram que as sanhas reivindicativas de PCP e Bloco se contagiassem reciprocamente, levando a sustentação do acordo para limites incomportáveis face à contradição externa, a pressão das autoridades europeias. Pelo menos aparentemente, no plano do acordo parlamentar, a capacidade política de perceber os malefícios de um rompimento tem frustrado as pretensões dos catastrofistas. No plano externo, tudo indica que a Comissão Europeia esteja mais preocupada com a situação do sistema financeiro do que com o défice. Para além disso, embora por agora se trate apenas de números, tudo indica que a meta imposta pela Comissão para 2016 seja mais do que superada e o défice projetado para 2017, incluindo a redução do défice estrutural, embora possa gerar discussão técnica e política não parece que as autoridades comunitárias tenham matéria para meter o nojo que desejariam.

Mas o que dizer da obra apresentada na passada sexta-feira? Certamente, não esperaria outra coisa, que não se trata de obra perfeita. Seguramente que a nota mais disseminada vai ser que o governo dá com uma mão o que se apressa a retirar com a outra. Não me parece que, por essa via, os que se oporiam em qualquer circunstância ao orçamento da maioria de esquerda cheguem a um lugar certo. A metáfora da mão direita e da mão esquerda pode ter alguma expressividade, mas não é seguro que as mãos sejam da mesma pessoa contribuinte. As mãos direita (a que corta) e esquerda (a que repõe ou oferece) podem pertencer a pessoas diferentes.

Primeiro do que tudo, o governo consegue algo de inesperado, apresentar alguma coisa que não pode ser acusado de falta de credibilidade quanto ao cenário de previsões em que assenta. Não sei se a Dra. Teodora Cardoso se terá contorcido com a afirmação de que o orçamento parte de uma base realista, mas é a primeira vez que isso sucede, depois de tanto zurzir nas previsões para 2016. E mesmo que o discurso de que a carga fiscal continua a aumentar prolifere em qualquer bicho careta, sendo espantoso a forma leviana como o debate político e jornalístico usa estas matérias, ouvi por acaso na sexta-feira passada o Contraditório da Antena 1 e o comentador político da Antena 1 Raul Vaz limitar-se a zurzir nos novos impostos sobre o consumo e a sentir-se penalizado no seu consumo de Sumol ao pequeno-almoço. Quando um orçamento é zurzido neste tipo de pormenores, penso que está tudo dito. E até aí a direita e seus representantes presentes ou ocultos têm de engolir o Comissário Europeu para a saúde a proclamar que tributar refrigerantes implica coragem política.

E mesmo a retórica do não cumprimento de promessas quanto à supressão da sobretaxa deixa muito a desejar, quando se compara este plano faseado de supressão com a data prevista pelo PAF para a sua eliminação que apontava para 2019. A mesma direita deve-se ter revirado nos sofás quando ouviu António Lobo Xavier no Quadratura do Círculo confirmar com clareza que a opção de redistribuir entre impostos diretos e indiretos, não mexendo no IVA, é amiga do crescimento e da redução da pobreza. E é um especialista em impostos que fala.

Tudo indica que o acordo à esquerda irá ultrapassar o cabo do Orçamento de 2017 para desgosto dos que avaliaram mal a postura das forças políticas que o suportam. No orçamento de 2017 e o folclore da sua discussão na especialidade não vai atraiçoar esta ideia, há suficientes marcas de reposição e redistribuição de rendimento para PCP e Bloco continuarem a afirmar-se perante os seus eleitorados. Além disso, a consignação do novo imposto imobiliário ao Fundo de Estabilidade da Segurança Social é uma boa malha política, clara como água e transparente na mensagem política que veicula. Certamente que há matérias em que o governo arrisca em meu entender desnecessariamente. O agravamento da tributação sobre o alojamento local parece-me precoce, face sobretudo ao impacto que essa forma de alojamento está a produzir em termos de renovação urbana. A questão que costumo colocar a gente minha conhecida que se pelará por controlar essa forma de alojamento turístico é a seguinte: o que seria dos espaços agora renovados se não tivesse acontecido esta procura da renovação para alojamento local? Teria acontecido? Não creio.

As grandes interrogações da situação atual, ultrapassado que esteja o cabo do orçamento de 2017, continuarão na capacidade da governação de criar melhores condições de crescimento económico e no fardo da dívida. Estas duas interrogações tendem a ser ligadas pela maioria dos analistas: o fardo da dívida, medido pelo peso dos juros que ela envolve, inibe a política pública de libertar recursos para o investimento. Não é esse em meu entender o principal fardo. O peso da opressão está na vulnerabilidade do que representam 128,3% do PIB em termos de dívida pública face à instabilidade do sistema financeiro a nível mundial.

Sem comentários:

Enviar um comentário