sexta-feira, 31 de maio de 2013

EUROPEÍSMOS (V)

(Peter Brookes, http://www.thetimes.co.uk)
 
Este cinzento mês 5 do ano 13 do século 21 ficará para a posteridade europeia como aquele em que se deu mais um passo na direção do estertor desse já sexagenário “sonho europeu”. Tal como o Durão de outros tempos, só não sabemos é quando finalizará ao certo a marcha para as novas configurações inapelavelmente decorrentes do divórcio que o referendo britânico consagrará.

 
Mas pior do que tudo são as desastrosas lideranças que nos tocaram em sorte, disfarçando na semântica da sua incompetência os pequenos (ou grandes?) interesses que verdadeiramente as movem. Quando esta semana o “The Economist” já lhes chama sleepwalkers e antecipa um “desastre do euro à espera de acontecer”…

quinta-feira, 30 de maio de 2013

A PALAVRA AO PROVEDOR


Eduardo Paz Ferreira foi o autor da ideia e coordenou o livro “Troika – Ano II”, posto à venda no dia em que se cumpriram dois anos sobre a assinatura do Memorando de Entendimento celebrado entre Portugal e a Troika (Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional) e reunindo o contributo de “um conjunto de personalidades de várias gerações, sensibilidades políticas e formações profissionais” no sentido de avaliarem uma Troika que “não presta contas a ninguém” e de olharem para o futuro de Portugal.

Um calhamaço de seiscentas páginas que justifica bem uma visita de algumas horas. Apenas para aguçar o apetite, abaixo transcrevo com a devida vénia um “impressivo” excerto do escrito do Provedor da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa:

A segunda magna questão [suscitada pelo segundo ano de Troika em Portugal] é a da Soberania. Na verdade, não é a primeira vez que Portugal pede ajuda externa. Tem acontecido várias vezes ao longo da nossa história. Só que é a primeira vez que o faz integrado numa União Político-Económica-Monetária que, ainda por cima, é de natureza jurídica indefinida, híbrida, incerta. Pode afirmar-se que o facto de pertencermos a essa União nos faz ter mais deveres e menos direitos do que em assistências externas anteriores.
Estão por estudar os termos da inédita limitação de soberania que vigora em Portugal desde há dois anos. Juridicamente, historicamente, patrioticamente, o que se tem passado é algo que representará um período muito específico e muito marcado nos manuais escolares que os alunos dos tempos vindoiros estudarão.
Por coincidência, neste tempo de contração da nossa soberania, o Presidente da Comissão Europeia é Português mas, de resto, nenhum dos membros da Entidade que superintende sobre a governação de Portugal dá sinais, sequer, de qualquer esforço de aprendizagem e de expressão da Língua Portuguesa. Não comparando, Filipe II de Espanha, I de Portugal, tinha ascendência Portuguesa, sabia exprimir-se na nossa Língua, conhecia os nossos usos e costumes.
Nessa época, a usurpação dos nossos poderes por estrangeiros foi de razões de descendência. Não havia ninguém com mais direitos de sucessão ao trono Português do que o sucessor do Rei de Espanha, neto de D. Manuel I, Rei de Portugal.
Aqui os laços não são de sangue. Resultam de Tratados Internacionais que nunca supusemos nos pudessem conduzir a uma situação como aquela que atravessamos.


Até tu Santanus?
 

quarta-feira, 29 de maio de 2013

AS ARTES SOB FOGO

(Tim Brinton)


Ontem, em viagem de fim de dia, num tráfego que também ele no Porto parece refletir os apertos em que estamos todos mergulhados, a TSF trouxe-me os ecos das agruras da cultura, neste caso do teatro. Testemunhos muito contundentes, com particular realce para o de João Lourenço (Teatro Aberto) na sequência da publicação da decisão da Direção Geral das Artes sobre os apoios às companhias de teatro, envolvendo 54 entidades e um montante de 4,3 milhões de euros. João Lourenço, sem papas na língua, acusa o governo de ter uma estratégia de destruir companhias de teatro estáveis como o Teatro Aberto, decidindo contestar os critérios que determinaram a penalização desta instituição e do teatro da Barraca.
Consultei, por isso, a ata final da decisão da DGArtes para tentar compreender os critérios de apreciação subjacentes à decisão tomada (qualidade artística do programa, relevância do percurso artístico e profissional, consistência do projeto de gestão e comunicação e capacidade de geração de receitas próprias e outros financiamentos) e os fatores de majoração (circulação regular nacional, circulação internacional, serviço educativo, acolhimento regular de projetos emergentes, atividade maioritariamente fora do concelho de Lisboa).
Considero que estamos perante um material de grande relevância para o estudo da territorialização da cultura em Portugal, pois o que nos aparece é uma forte diversidade de experiências regionais, não me parecendo existir nenhum desequilíbrio visível discriminando a iniciativa fora da capital. O número de entidades e companhias situadas na região de Lisboa que não atingiram o “cut-off” dos apoios a conceder, ou seja, do grupo de entidades que não foram contempladas com apoios, é significativo. Como é compreensível, o meu conhecimento do panorama teatral nacional não me permite avaliar se a lista publicada é consistente. A sua consulta é, porém, reveladora. À medida que descemos no ranking constituído os cortes nos apoios solicitados descem para 50% e menos. Um critério expedito que utilizei foi verificar se nas primeiras 30 entidades/companhias classificadas estão as minhas referências. E aqui não saí muito frustrado. No topo da classificação, estão duas entidades que me merecem admiração: O Bando e o Teatro da Cornucópia e entre as 30 estão entidades como o Teatro do Bolhão, o Círculo de Cultura Teatral – TEP, a Comuna, o Teatro de Marionetas do Porto. Surpreendentemente, aparece em 3º lugar, logo atrás do Bando e da Cornucópia, o Teatro de Ferro com sede em Vila Nova de Gaia, que muito sinceramente desconhecia, o que não abona nada a favor da minha cultura residencial gaiense, mas que vale a pena conhecer.
A informação tem algo que ver com as cerejas e mesmo a propósito chegou-me em newsletter habitual uma reflexão vinda do blog da revista Foreign Policy que acompanho regularmente: “European Art in an age of austerity” de Joshua Keating. 
O artigo evidencia bem como o financiamento público da produção cultural está sob fogo nas economias do sul, mas também noutros países da UE como a Holanda. Mas o autor não deixa de referir que, apesar de toda a cena dos cortes de financiamento público à cultura, esse financiamento continuará apesar disso bastante acima do que os americanos considerariam exorbitante como apoio público. A questão é, porém, outra. Num contexto como o que se tem vivido, solicitar aos agentes culturais o acesso dominante a apoios privados é pura miragem. Daí que o autor se interrogue provocatoriamente se teremos neste contexto uma cultura europeia algo mais turbulenta e interventiva do que temos tido nos últimos tempos. Um dos patronos deste blogue, Hirschman, refere que há ciclos de deceção e de proatividade nas instituições e na sua participação nos destinos da sociedade. Todos os elementos apontam para que estejamos num ciclo proativo. E certamente a cultura não fugirá a essa tendência.
Tenho para mim que um dos maiores fatores de insustentabilidade das instituições culturais prende-se com questões de procura e de baixo consumo cultural per capita dos portugueses, embora haja progressão nesse domínio. O que é para mim bastante perturbador é a convicção de que o serviço privado e público (pasme-se, mas é assim) de televisão é o grande responsável por essa baixa propensão, pois em vez de contrariar o baixo nível de qualificação da população portuguesa, antes o prolonga e explora por vezes até à náusea, confundindo alarvemente entretenimento com degradação cultural. Basta percorrer a programação ao longo do dia em zapping aleatório para o compreender.

O EXEMPLO DO JAPÃO


Parece que é desta! Algo surpreendentemente, e sob a batuta de Shinzo Abe, tudo aponta para um Japão a querer despertar de um longuíssimo sono deflacionista de mais de quinze anos.

Chegado em dezembro último, o novo primeiro-ministro trazia um programa de mudança da estratégia económica cuja principal motivação subjacente terá estado, segundo alguns conhecedores da realidade nipónica, no efeito conjugado do “duplo choque” ocorrido em 2011 quando às terríveis implicações do tsunami e do acidente nuclear de Fukushima se veio juntar o abanão nacionalista provocado pela relegação do Japão para terceira economia do mundo em benefício da China.

No centro da receita, que já vai sendo conhecida pela designação de “Abenomics”, encontra-se um confronto com a dupla obsessão da estabilidade dos preços e do iene forte em que o país se deixara mergulhar. Para tal, o presidente do Banco do Japão (Haruhiko Kuroda) foi instado a abandonar a ortodoxia austeritária – ao que respondeu com um programa de lançamento maciço (21 mil milhões de dólares mensais) de obrigações do Tesouro –, enquanto o ministro para a Revitalização Económica e o Governo no seu conjunto introduziam reformas agressivas visando a incentivação fiscal e a competitividade internacional.

Os frutos começam a surgir, através de resultados já relativamente sólidos: crescimento económico anualizado de 3,5% no primeiro trimestre, forte relançamento do consumo interno, fixação de um objetivo de inflação de 2%, depreciação de 22% do iene em relação ao dólar, subida da bolsa de valores. Sem prejuízo das inúmeras dificuldades ainda a enfrentar, designadamente as associadas à permanência de fatores de risco tão variados quanto a enormidade da dívida pública (não muito longe de 250% do PIB), os traumas não inteiramente resolvidos de uma gigantesca crise bancária, a quebra e o envelhecimento populacional, a inércia instalada nos comportamentos ou as ineficiências regulatórias.

Dito tudo isto, finalizo com a sugestão egoísta de um convite urgente a Abe e Kuroda para um périplo europeu com paragens obrigatórias em Bruxelas, Frankfurt e Berlim. Porque, vista do lado desta nossa deprimente e deprimida Europa, a atual realidade japonesa tem muito para servir de inspiração aos chamados “responsáveis” que nos moldam/tramam o destino… 
 

PORQUE NÃO TE CALAS? (9)


Esta noite, quando assistia a um interessante “Termómetro Político” na RTP Informação, banzei ao ouvir um jornalista que até aprecio e tem a magna responsabilidade de exercer o cargo de diretor do prestigiado “Diário de Notícias”, João Marcelino, pronunciar a seguinte e insólita pérola: “O meu meio minuto é para dizer que em Lisboa não há centralismo, os lisboetas não são centralistas, os centralistas são as pessoas do Norte, do Centro e do Sul que invadem Lisboa e, a partir daí, desenvolvem essa forma de olhar para o País”! Um momento revelador ou apenas uma infelicidade momentânea? Verdade ou consequência?

terça-feira, 28 de maio de 2013

A NOVA LINHA DIVISÓRIA



Tal como ontem previ, a carta aberta de Reinhart e Rogoff (R&R) a Krugman fez emergir uma nova linha divisória no debate em torno da melhor solução para resolver a crise das dívidas soberanas e sobretudo a gravosa situação das economias do sul.
Essa linha divisória deixou de ser a de sim ou não à austeridade pela austeridade, pois R&R abandonaram essa trincheira.
A questão está agora mais clara entre os que ousam debater esta questão.
De um lado, R&R propondo anulação de dívida nas economias do sul e capacidade dos alemães em injetar capital na sua banca mais exposta a essa possibilidade, defendendo complementarmente a continuidade de uma política monetária expansionista por parte do BCE.
Do outro lado, Krugman e DeLong, liderando um vasto movimento, propondo no sul algum alívio das exigências de austeridade desejavelmente acompanhado de políticas de competitividade e no norte, particularmente na Alemanha, um estímulo fiscal gerador de subida de salários e de incremento de importações a partir do sul, contribuindo assim para gerir o desequilíbrio norte-sul no interior da zona euro e reduzir o gap de competitividade a ele associado.
Porém, convém não ignorar que ambos os blocos do debate esquecem que sem Alemanha cooperante não há saída para qualquer um dos lados da barricada. O estímulo fiscal procíclico de Krugman e DeLong não goza das preferências alemãs, permanecendo apenas a interrogação de saber se essa negação é estrutural ou se o resultado das eleições de setembro pode amenizar essa posição. Por outro lado, as teses de R&R esbarram também com a desconfiança alemã: o alívio da austeridade parece problemático e anulação da dívida com injeção de capital adicional na banca mais exposta constitui uma miragem. Para além disso, mesmo a política monetária expansionista do BCE conta com a oposição sistemática do Bundesbank.
Moral da história: o lio persiste, mas não envolvam a ciência económica na sua justificação, pelo menos a mais esclarecida. Outros valores e teimosias o explicam.

DIA DA SEGURANÇA SOCIAL


Só para marcar o dia, agora que parece haver dias para tudo e mais alguma coisa: “Se não temos cuidado, há um buraco de ozono quanto ao Estado de direito, quanto à democracia, quanto aos direitos fundamentais e quanto à dignidade da pessoa humana. (…) Porque o impacto de algumas medidas destas é de privar as pessoas quase do mínimo de subsistência, por isso está tudo em causa; e eu penso que muitas pessoas já atingiram esse limite.”

O CALOTE ALEMÃO



Sob o sugestivo título “A Dívida Que Não Devemos Pagar”, Robert Kuttner publicou na primeira “New York Review of Books” deste mês uma interessante recensão do volumoso livro “Debt: The First 5,000 Years” de David Graeber. Onde escreve, nomeadamente: “A Alemanha, o principal agente de imposição da austeridade na Zona Euro de hoje, foi em 1948 a beneficiária de um dos mais magnânimos atos de amnistia da dívida da História. Nos anos 20, os Aliados cometeram o erro catastrófico de ajudar a destruir a economia alemã com políticas de reparações e acumulação de dívida. Nos anos 40, após um breve encantamento com o modelo de reparações da 1ª Guerra Mundial, os poderes ocupantes concordaram em comportar-se diferentemente: liquidaram 93% da dívida da era nazi e protelaram por quase um século um conjunto de outras dívidas. A Alemanha, cujo rácio da dívida em relação ao PIB era de 675% em 1939, tinha assim uma carga de dívida de cerca de 12% no início dos anos 50 – muito menos do que os Aliados vencedores –, o que contribuiu para produzir o milagre económico alemão do pós-guerra. Quase todos os cidadãos alemães sabem citar o Plano Marshall, mas este enorme ato de misericórdia macroeconómica desapareceu da consciência política de atual política de austeridade alemã. Quaisquer que tenham sido os pecados fiscais cometidos pelos gregos, os nazis fizeram pior.”

Debrucemo-nos um pouco mais sobre a matéria, recorrendo para tal a trabalhos realizados sobre o tema pelo professor Albrecht Ritschl (London School of Economics) – detentor de uma vastíssima investigação no domínio da história económica –, designadamente quanto à questão da Alemanha como “o maior transgressor de dívida do século XX” e, correspondentemente, quanto à “curteza da memória coletiva alemã”. Sumariemos ilustrativamente alguns dos seus contributos mais apelativos na matéria.

1.       “De 1924 a 1929, a República de Weimar viveu a crédito e até pediu dinheiro emprestado à América para pagar as suas reparações da 1ª Guerra Mundial. Esta pirâmide de crédito colapsou durante a crise económica de 1931. O dinheiro desapareceu, os danos para os Estados Unidos foram enormes, o efeito na economia global foi devastador.”

2.       “Medida em cada caso por referência ao desempenho económico dos EUA, só o default da dívida alemã nos anos 30 foi tão significativo como oso custos da crise financeira de 2008.”

3.       “Apenas durante o século passado, todavia, [a Alemanha tornou-se insolvente] pelo menos três vezes. Após o primeiro default, durante os anos 30, os EUA concederam à Alemanha um haircut em 1953, reduzindo o seu problema de dívida a praticamente nada. A Alemanha ficou numa ótima posição desde então, mesmo se outros países europeus foram forçados a suportar o peso da 2ª Guerra Mundial e as consequências da ocupação alemã.”

4.       “Com poucas exceções, todas essas demandas [de altas reparações à Alemanha] foram postas em banho-maria até uma futura reunificação alemã. Para a Alemanha, tal foi um gesto salvador e constituiu a real base financeira do Wirtschaftswunder ou milagre económico.”

5.       “(…) o então chanceler Helmut Kohl recusou-se à época [1990] a implementar alterações ao Acordo de Londres sobre as Dívidas Externas Alemãs de 1953. Sob os termos do acordo, em caso de ocorrer uma reunificação, a questão dos pagamentos das reparações alemãs da 2ª Guerra Mundial deveria ser novamente regulamentada. (…) Com a exceção de uma indemnização paga a trabalhadores forçados, os alemães não pagaram qualquer reparação após 1990 – e nem sequer liquidaram os empréstimos e custos de ocupação provocados nos países que ocuparam durante a 2ª Guerra Mundial.”

Refira-se, a concluir, que o governo grego é o único dos países agredidos que tem procurado reaver algumas destas indemnizações em sede de tribunal internacional. Segundo um relatório do Ministério das Finanças de Atenas o total das reparações devidas pela Alemanha ascenderá, a valores atuais, a cerca de 162 mil milhões de euros (108 mil milhões resultantes de encargos com a reconstrução do país na sequência da ocupação por tropas alemãs e 54 mil milhões decorrentes de empréstimos que o regime nazi forçou a Grécia a fazer), montante curiosamente próximo do hoje em dívida junto da Troika.

Apesar de tudo, um assunto que não deixa de ser polémico. Como bem o demonstra a múltipla troca de “mimos” entre o acima citado Ritschl e o falcão alemão Hans-Werner Sinn, presidente do “Ifo Institute”, em artigos sucessivos há quase um ano publicados pelo “New York Times”. Rigorosamente a não perder…

segunda-feira, 27 de maio de 2013

PORTUGAL NO FINANCIAL TIMES



A instabilidade social, a desagregação da rede de proteção e solidariedade social de âmbito familiar e as suas consequências sobre a destruição dos pequenos negócios em Portugal foram no dia 26 matéria de reportagem e crónica no Financial Times, o que não deixa de ser uma forma bizarra de aparecer num dos principais jornais económicos que corre mundo. De uma vez por todas Gaspar (agora muito ofendido na conferência de imprensa com o Presidente do Eurogrupo, esse socialista (???) holandês de nome impronunciável, não foi a estrela.
Mas a reportagem tem um paradoxo. Com a exceção de João Vieira Lopes da Confederação do Comércio nenhum dos economistas ouvidos na reportagem tem a mínima sensibilidade para compreender as fissuras da sociedade portuguesa que a reportagem acaba por denunciar. Paradoxal não é?

A CARTA: R&R versus KRUGMAN



Tal como tenho aqui referido o debate em torno da pouco rigorosa associação das teses de Reinhart e Rogoff à resolução da crise das dívidas soberanas por via de processos abruptos e socialmente penosos de consolidação de contas públicas ilustra cabalmente a superioridade do debate americano quando comparado com o europeu. E, como tenho vindo a salientar, Reinhart e Rogoff são adversários duros de roer e têm, embora em posição de inferioridade, contribuído decisivamente para a sua elevação.
A carta aberta que dirigiram a passada semana a Paul Krugman é uma excelente peça para compreender os argumentos em presença e a especificidade da posição dos dois autores. Krugman não deixa de estar na berlinda como foco desta carta, até porque o seu mais recente artigo na New York Review of Books está no centro da questão. Mas não apenas por isso. O confronto dos argumentos permite confirmar que a argumentação de Krugman não é totalmente isenta de imprecisões na sua análise crítica aos dois autores em questão. Daí que pela carta passe alguma sensação de melindre, de expressão de alguma injustiça de que terão sido alvos. É o caso, por exemplo, da acusação feita aos autores de não terem garantido pleno acesso às bases de dados que têm construído e trabalhado. Haverá aqui provavelmente nuances tipicamente intra-academia USA que nos escapam, mas essa questão é menor face ao interesse do debate.
O trunfo que Reinhart e Rogoff transportam para o debate concentra-se sobretudo no seu valioso trabalho de análise histórica de um número imenso de crises financeiras e dos períodos e penosidades implicados pela sua recuperação.
Na sua defesa mais recente, R&R deixam praticamente cair o argumento do limiar dos 90% de peso da dívida pública no PIB, para se concentrarem na relação descendente entre peso da dívida pública no PIB e crescimento económico, continuando a bater-se pela evidência de que os mais endividados tendem a crescer menos 1%, o que face aos períodos prolongados de subsistência do problema pode ser, em seu entender, bastante penalizador. R&R não ignoram também que a relação peso da dívida – crescimento é ambivalente, embora ao contrário de Krugman tendam a atribuir à possibilidade de ser o baixo crescimento a determinar o aumento da dívida uma presença mais pontual.
Mas a dimensão em que R&R dão mais luta é seguramente aquela em que os autores se demarcam da acusação de representarem em termos concretos a fonte de racionalização da abordagem à crise das dívidas soberanas. Os autores fornecem a esse respeito um conjunto suficientemente representativo de evidências ilustrativas de posições por ambos assumidas em momentos diversos segundo as quais a sua demarcação é clara.
Os autores recorrem para o efeito a uma curiosa tipologia de situações de endividamento, situações dramáticas (como a portuguesa, irlandesa ou grega) e situações não dramáticas (como a dos EUA, nos tempos que correm). No primeiro caso, extensivo a todas as economias periféricas, R&R preferem o corte da dívida destas economias ao estímulo fiscal nas economias avançadas como a Alemanha, entendendo-a como uma via mais direta e eficaz a curto prazo para retomar os mecanismos do crédito às economias mais atingidas. E aqui parece-me haver uma contradição nos autores. Rejeitam a hipótese do estímulo fiscal na Alemanha, principal destino das exportações das economias periféricas, com o argumento de um eventual sobreaquecimento da economia alemã que poderia obrigar Draghi a um eventual aperto de taxas de juro. Mas não hesitam em defender a anulação de dívida e a injeção de capital por parte da Alemanha nos seus bancos mais expostos a esse corte de dívida. A exequibilidade da segunda opção quando comparada com a primeira não é justificada. Para além disso, o sobreaquecimento da economia alemã como resultado do eventual estímulo fiscal não parece muito convincente face ao grau de utilização da capacidade produtiva. R&R parecem aqui colocar-se na pele do sentimento alemão sobre os perigos dos riscos inflacionários.
Mas a importância da carta de R&R a Krugman reside a meu ver na identificação do que é de facto a diferença crucial que os separa. Apoiados na sua investigação empírica do longo prazo, R&R são claros em declarar-se como alguém que sobrevaloriza os riscos de um endividamento adicional para suportar o estímulo fiscal exigido por Krugman e outros. Rejeitam-no por impossibilidade material nos países periféricos (daí a sua preferência não pela austeridade, mas antes pela anulação de dívida). Consideram-no arriscado face às evidências do passado nos países endividados sem drama, sobretudo pelo risco que atribuem à volatilidade das taxas de juro: R&R dirigindo-se a Krugman: “Pode estar certo e desta vez pode ser, apesar de tudo, diferente. Se isso acontecer admitiremos que estávamos errados. Qualquer que seja o resultado, pretendemos colocar os resultados à disposição e em contexto próprio da comunidade de estudantes, responsáveis pela política económica e sociedade civil”. O que não deixa de ser uma ironia, pois o subtítulo da obra seminal de R&R é precisamente “This time is different”.
Concluindo, o que parece ser a linha divisória no debate que opõe R&R aos seus detratores não é o uso indiscriminado da austeridade pela austeridade como forma de superação das crises de endividamento. R&R demarcam-se dessa posição, o que suscita a relevante questão de saber que condições geraram essa associação pelos vistos indevida. R&R defendem pelo contrário nos países com drama o corte da dívida e nos outros uma preparação a prazo da estabilidade fiscal. A linha divisória está antes na avaliação dos riscos associados ao estímulo fiscal para intervir no denominador (crescimento): sobreavaliação em R&R apoiados na história; subavaliação em Krugman e outros baseados na situação presente: taxas de juro nulas ou negativas e produto claramente abaixo do produto potencial, logo concedendo uma margem de manobra ao crescimento inflacionário. A única abordagem empírica consistente que conheço para deslindar esta linha divisória é a de DeLong e Summers e aplica-se à economia americana. O impacto do estímulo fiscal em termos de crescimento económico surge superior aos custos futuros inerentes aos custos do endividamento adicional. A procissão vai no adro e certamente que neste preciso momento estará em curso nova investigação sobre o tema. É assim que uma comunidade de ideias se desenvolve, aberta e não abdicando de intervir no presente. O confronto com o marasmo das ideias do lá de cá do Atlântico é confrangedor, por isso Ohli Rehn e outros medíocres se arrepiam todos à mínima controvérsia.