sexta-feira, 10 de maio de 2013

PRECIOSIDADES (9)


Foi um António Barreto “de luxo”, como diria a Ana Lourenço, que esteve a noite passada na SIC-N. Ao nível dos seus melhores tempos das crónicas do “Público” de há mais de vinte anos, mas onde foi mais longe ao confessar: “Eu sei que sou muito velho, mas é a primeira vez em 35 anos que eu digo que sinto que existem ameaças que põem em causa a democracia”.
 
(Miro Stefanovic, Serbia, "Shipwreck”,
Grande Prémio “XV Porto Cartoon World Festival”, 2013,
 
E assim se explicou mais em detalhe: “Eu sei que todos os dias damos um passo mais, e já não é só o material, já não é só o rendimento, o emprego, o desemprego. Só hoje já ouvi duas notícias que me deixaram, entre ontem e hoje, assarapantado.
Um membro do Governo que disse com toda a ligeireza que estava a pensar tomar medidas retroativas relativamente às pensões e aos descontos de pensões, e disse com certeza retroativas – fica-se assim, é das coisas com que não se pode brincar num Estado de direito, não se pode brincar com isso.
E a outra é a União Europeia a cobrir os Estados europeus que estão com algumas dificuldades e a dizer que certamente que os depósitos de mais de 100 mil euros que vão conhecer alguns problemas, não se sabe se é nos rendimentos ou se é no próprio capital e se é no esbulho ou se é na retenção dos depósitos, isso não se sabe; eu não sei se em Portugal há muitas pessoas com mais de 100 mil euros, certamente que não haverá muitas mas é capaz de haver uns milhares, umas dezenas de milhar ou centenas de milhar não sei exatamente, e não sei sequer se a banca sabe – simplesmente o aviso está dado: nada é seguro, não posso confiar em nada, nem sequer no banco, e um aviso destes em que o próprio Governo e a União Europeia, mais uma vez, vem dizer isto aos cidadãos, está lançado uma espécie de..., pode desencadear-se uma labareda de desaparecimento de dinheiro, de dinheiros que são extraviados, que são guardados em casa, que são guardados noutro sítio, que vão para o estrangeiro, que vão para offshores, tudo pode acontecer com isto.
Mexer nestas coisas, mexer na confiança, mexer na certeza do direito –já tivemos algumas brincadeiras com a Constituição –, mexer no princípio da não retroatividade das leis são coisas que não se podem fazer a brincar. E os nossos políticos e as autoridades atuais e o Governo estão a começar a dar sinais de menor seriedade relativamente a estas coisas importantes do Estado de direito e, em última análise, da democracia.


Na sequência, Barreto não esteve com meias palavras em relação aos partidos. Perguntado sobre quem é que eles representam hoje, foi arrasador: “eles próprios e umas claques – claques, já não é massa associativa, é claques”. Acrescentando: “os partidos acreditam na televisão, (…) acreditam que aquilo é verdade, mas quem não está lá já acredita cada vez menos, cada vez menos”.

O sociólogo defendeu ainda convictamente a sua “dama” de há mais de 25 anos: a justiça como o nosso problema fundamental. Por um lado, afirmando: “A justiça é o sangue da democracia, é o sangue da liberdade. Eu só me sinto livre se sentir que há qualquer coisa, neste caso a justiça, que vem repor a minha liberdade se a minha liberdade for ameaçada, vem proteger a minha liberdade, vem dar segurança à minha liberdade – é a justiça e é o fundamental. E é a última coisa, há vinte, há trinta, há quarenta anos parece ser a última coisa na qual o legislador pensa quando quer fazer alguma coisa de importante para o País.” Por outro lado, analisando: “A justiça portuguesa nunca teve um repensamento global desde a Revolução. A justiça portuguesa nunca foi repensada globalmente à luz da democracia, à luz da liberdade, à luz dos direitos dos cidadãos, à luz do direito comunitário, à luz do capitalismo, à luz da economia de mercado, da iniciativa privada, tudo isto em conjunto são novidades para a justiça. E a justiça vai-se arranjando, assim um bocadinho aqui um bocadinho acolá. Depois, vive em mundo fechado (...)”
 
Num outro registo, o investigador referiu-se também à sua atual preocupação intelectual: procurar identificar os fatores que seguram a nossa democracia. Excluindo a tradição portuguesa ou a cultura democrática ou algumas forças e grupos fundamentais da sociedade (as elites – empresariais, culturais, políticas –, as classes proprietárias e a Igreja), explicitou os seguintes quatro:
· “A União Europeia, com a qual vivemos há 35 anos que, através de múltiplas contribuições – umas políticas, outras jurídicas, outras económicas, outras de espaço, outras de meio, o meio em que os portugueses vivem hoje já não é só Portugal –, tudo isto contribui para a democracia em Portugal.
· O Estado social, que “foi uma espécie de cimento da democracia. Não havia tradição política democrática, não havia instituições democráticas, mas passou a haver o Estado social e as pessoas passaram a pensar que viver em democracia era bom porque havia um Estado social que as protegia.
· O “consenso constitucional”, “isto é, houve uma maioria constitucional que o regime e o País e a democracia durante estes 30 ou 40 anos, houve um arco constitucional. (…) Em certos aspetos, o consenso até era mais largo que os três partidos do arco porque foi a primeira vez que em Portugal se viveu sem refugiados, se viveu sem gente no estrangeiro, toda a gente cabia neste nosso regime.
· O “negócio do Estado”, que se traduz “num enorme arranjo entre o Estado Central, três ou quatro grandes grupos financeiros e económicos, alguns grupos de algumas empresas que têm interesses diretamente nos negócios com o Estado, algumas ou muitas autarquias que também têm negócios com o Estado, as empresas públicas. Este grande grupo tinha uns arranjos fantásticos, a começar pelas PPPs.

Salientou a dramática desvitalização de cada um dos fatores de suporte identificados, passando ao de leve pelos três primeiros – “a União Europeia já não tem soluções, ou tem poucas, tem menores soluções”; “o Estado social, hoje, está a ser desgastado, a erosão a bater no Estado social, o Estado social a diminuir”; “está a quebrar a fratura dentro deste consenso constitucional, a fratura entre PS e PSD está cada vez maior, já não há sequer a possibilidade de pensar, por exemplo, como é que poderá vir a ser o Estado” – e detendo-se um pouco mais no último (“a verdade pode desmoronar o acordo fundamental entre o poder político e o poder económico”). Nestes termos precisos: “Mas é terrível. Porque ou a comissão de inquérito, nacional ou internacional, apaga isto tudo e diz que as PPPs e os ‘swaps’ e tudo isso, no fim de contas, eram pequenos arranjos e que é preciso passar à frente, que é o que tantas vezes acontece, e então, definitivamente, não há justiça em Portugal. Ou essas comissões de inquérito, nacionais ou internacionais, vão ao fundo das coisas e, para ir ao fundo das coisas, há muita gente a sofrer e a penar e há muita gente dos grandes partidos, e há muita gente das empresas públicas e das empresas privadas, de alguns grupos e de algumas autarquias. Eu já não sei, nos meus fantasmas, eu já sei se é melhor ir até ao fim e desvendar o que é preciso desvendar, e talvez por em risco este pacto que pôs a democracia de pé – o que põe uma democracia de pé não são só coisas boas, não é só nobreza e virtude, são interesses também.

A terminar, foi um lutador quase resignado que – confrontado com um “não temos alternativa?” – respirou fundo, encolheu os ombros, abriu os braços (ver imagem acima) e respondeu: “temos que explicar, explicar, dizer, falar, denunciar, explicar, denunciar, ajudar a compreender, na esperança que a população, em atos eleitorais e nos atos necessários, tome as suas decisões”…

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