domingo, 21 de agosto de 2016

ARMADILHAS DA POLÍTICA MONETÁRIA




(Notas sobre um debate que só aparentemente não nos interessa)

Há por aí algumas vozes (exemplo da jornalista Helena Garrido) que apregoam o não interesse para a economia portuguesa de seguir o debate que vai sendo construído em torno dos temas da estagnação secular e dos desafios que daí resultam para a política monetária no contexto associado de muito baixas, senão nulas, taxas naturais reais de juro. O argumento peregrino é que tais ideias nunca terão aplicação em economias altamente endividadas como a nossa e sobretudo incapazes de, mesmo nessas condições, aceder sem constrangimento aos mercados de financiamento internacional como, por exemplo, a economia americana. O argumento é peregrino porque ninguém alguma vez admitiu que os resultados desse debate teriam aplicação direta na economia portuguesa. Isso não significa que o debate seja irrelevante ou inútil. Ele é, pelo contrário, um debate central, embora se confine ao universo das economias avançadas. Por um lado, os rumos desse debate não serão indiferentes ao modo como o BCE evoluirá em termos de mandato estatutário, preso como está, apesar das piruetas arriscadas de Draghi, à ortodoxia monetária que presidiu à sua constituição (com o beneplácito da social-democracia europeia, repita-se sempre). Por outro lado, a ultrapassagem da doença estagnacionista que penetrou as sociedades mais avançadas é vital para uma economia pequena e aberta como a nossa. Por todas estas razões, o que está em jogo nessa discussão é bem mais profundo e impactante do que continuar ou não com a austeridade, pois essa opção tem matizes que dependem fortemente da evolução da cena económica mundial.

O que sabemos é que há um conjunto bem identificado de tendências estruturais que acompanham o ambiente de taxas naturais (neutrais) de juro baixas nas economias mais avançadas: desigualdade crescente, desaceleração do crescimento da força de trabalho, preços relativos cada vez mais baixos dos bens de capital, desaceleração do crescimento da produtividade (também em parte relacionada com o cenário de envelhecimento demográfico da força de trabalho), mais afluxo de poupanças provenientes das economias emergentes e procura crescente de ativos financeiros mais seguros. Todos estes fatores convergem na sua influência sobre os sinais de estagnação económica.

Pois, neste contexto, como seria expectável, observam-se sinais de que a política monetária não poderá deixar de ser reequacionada para fazer face às novas condições com que tem de trabalhar.

A semana passada, a publicação das atas da última reunião alargada do FED de julho (ver link aqui), cujo conjunto de participações é imenso, animou o aparecimento de vários artigos na blogosfera económica sobre o que tal reunião representou nessa perspetiva de novos paradigmas de intervenção para a política monetária. Mas o artigo (curto, sob a forma de “economic letter”, mas de grande alcance e notoriedade) com maior significado foi publicado pelo Presidente de Reserva Federal de San Francisco, o economista John C. Williams, cujo peso em termos de matéria de política monetária é por demais conhecido (ver link aqui). O artigo de Williams (aliás rapidamente reconhecido pelo sempre incisivo Lawrence Summers no seu blogue, ver link aqui) é muito relevante pois traça rumos bem marcados para uma mudança do tipo de intervenção que a política monetária tem até aqui prosseguido.

O conceito-chave de que Williams parte, já aqui por repetidas vezes referenciado neste blogue, é a taxa natural de juro, conceito de difícil tratamento em economia, pois não tem uma medida estatística isenta de problemas. Várias definições de taxa natural de juro são possíveis, o que atesta a referida dificuldade, mas Williams utiliza uma definição muito pragmática: é a taxa de juro de curto prazo ajustada pela inflação, real como os economistas tendem a classificar, que coloca a política monetária em equilíbrio, ou seja que assegura que a política monetária não tenha de ser nem acomodatícia nem restritiva em termos de crescimento e inflação. Na simbologia de Williams, teremos a r*. O relevante é compreender que os bancos centrais estão limitados a fixar a taxa de juro de curto prazo. O nível da r* dependerá do comportamento da economia.

As evidências incontornáveis do pós 2007-2008 apontam para que r* tenda a manter-se em níveis bastante baixos, que uns consideram ser anómalos, outros como Williams e Summers alertam para que constituem um “novo normal” dos próximos tempos. Sem querer maçar os leitores com questões demasiado técnicas, interessa sobretudo realçar que baixas r* significam que a política monetária dispõe de uma curta margem de manobra para estimular a economia. Os novos tempos anunciam recessões mais longas e profundas e recuperações mais lentas, que são a marca do pós 2007-2008. É neste contexto que devemos compreender o que tenho vindo a designar de piruetas da política monetária. Intervenções mais heterodoxas têm sido ensaiadas e é nessa linha que Draghi tem dirigido a intervenção do BCE. O que é relevante no artigo de Williams é a perceção de alguém de dentro da matéria (como Presidente do FED de San Francisco ele participa nas decisões do FED) apontar para os limites de tais piruetas e para a necessidade de novos compromissos na condução futura da política monetária.

A primeira, que Summers gostaria de ter expressão mais vincada, é o reconhecimento inequívoco por parte de Williams de que não mais pode ser escamoteado o papel da política fiscal neste contexto de recessões desta natureza. Parece evidente que o pretenso papel da política monetária como substituto da política fiscal, exercida por bancos centrais independentes dos executivos políticos, está hoje desacreditado. O novo normal apagou essa ilusão por muito que custe aos que torcem o nariz à política fiscal.

A segunda saída é a projeção de uma meta de inflação superior aos já míticos 2%, por exemplo 4%, abrindo caminho a políticas reflacionárias para garantir ao banco central mais margem de manobra. Em alternativa, os bancos centrais podem prosseguir metas de níveis flexíveis de preços ou de PIB, abandonando a taxa de inflação (variação e não nível de preços como metas).

Quando alguém de dentro da política monetária tem esta clarividência, algo se anuncia em termos de mudança de rumos de intervenção. Mas uma grande interrogação permanece: o que pensarão as autoridades monetárias alemãs desta matéria?

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