quarta-feira, 17 de agosto de 2016

STIGLITZ E A QUESTÃO CENTRAL DO EURO




(A obra em causa estará em trânsito no correio, mas um artigo de Stiglitz no Financial Times e a recensão crítica de Martin Sandbu também no FT permitem antecipar um debate central para as nossas vidas)

Joseph Stiglitz acaba de publicar na Allen Lane/W.W. Norton & Company a sua última obra “The Euro: How a Common Currency Threatens the Future of Europe” ainda em trânsito e com alguns dias de espera para chegar à minha secretária. Stiglitz tem uma capacidade prodigiosa de comunicação escrita, combinando o rigor formal apreciado entre pares com um poder de penetração dos media económicos e não só que é hoje pouco comum no universo dos macroeconomistas. Enquanto o livro não chega, o artigo que hoje publica no Financial Times on line (ver link aqui) e a recensão crítica de Martin Sandbu, também publicada no FT mas a 5 de agosto (ver link aqui), são já matéria suficiente para definir a arquitetura de um debate que será decisivo para as nossas vidas de cidadãos europeus, ensanduichados por uma integração que entrou em relativa agonia. Diga-se que o debate não é novo, ele tem sido intuído por muitos, mas o contributo de Stiglitz consiste em atribuir-lhe mais clareza, embora Sandbu assinale que isso não significa ausência de contradições nas posições do economista americano.

O que é que então Stiglitz traz de mais claro para o debate do euro?

O que resulta do contributo de Stiglitz é estarmos perante o seguinte dilema: (i) ou se assume que o euro é uma construção política precoce e viciada nos seus princípios de constituição e por isso a saída consistirá na preparação de um abandono airoso que permita preservar os princípios básicos da integração europeia (ii) ou se admite que as regras adicionais necessárias para que a união monetária funcione são viáveis podendo assim ser preservada. Pela leitura do artigo de Stiglitz no FT compreende-se a interrogação crítica de Sandbu. De facto, Stiglitz é duro nos argumentos que apontam para o euro como construção precoce e viciada, mas paradoxalmente é brilhante e contributivo na denúncia de como se poderia ter feito muita coisa de melhor com a união monetária a funcionar.

É à explicitação deste dilema que associo uma maior clareza na arquitetura do debate. Para problemas desta natureza, não é possível uma transformação positiva sem uma rigorosa avaliação do problema. E essa avaliação passará inevitavelmente pela análise de viabilidade das tais regras que poderão assegurar que o euro seja uma construção preparada para suportar as pressões já amplamente identificadas pela grande maioria dos economistas que têm escrito sobre a matéria. O caminho crítico deverá ser então o seguinte. Se tais regras forem viáveis e houver condições políticas (leia-se sobretudo o pronunciamento alemão sobre a matéria) para as materializar, a união poderá ser preservada. Caso contrário, há que preparar uma trajetória de saída.

Hoje, há acordo sobre a evidência de que a união monetária não atingiu os seus propósitos, ou seja proporcionar crescimento económico à Europa e assegurar a repartição solidária dos seus benefícios. Há também acordo sobre os riscos que o Euro trouxe de retirar aos países dois instrumentos essenciais de ajustamento macroeconómico, taxas de juro e taxas de câmbio, imperfeitamente substituídos por um mandato de BCE exclusivamente centrado na estabilidade dos preços, embora com piruetas arriscadas Draghi tenha tentado minimizar as limitações desse mandato estatutário. Há ainda acordo quanto à evidência de que a desvalorização real da taxa de câmbio, a chamada desvalorização interna (concretizada à custa de desemprego e de cortes salariais), tem limites enquanto instrumento de ajustamento, até porque não são imagináveis saltos enormes de produtividade nos países sob ajustamento (Portugal incluído).

Assim sendo, uma de duas e daí o dilema central do papel que cabe à união monetária no projeto europeu (se podemos ainda falar assim): ou a construção inicial pode ser consertada ou uma trajetória de saída deve ser preparada, pois não há poder político em democracia que consiga aguentar uma trajetória longa de empobrecimento.

O curioso é que Stiglitz fornece argumentos para ambas as opções do dilema e Sandbu é perspicaz ao identificar esse paradoxo.

No sentido da preservação melhorada da união monetária, Stiglitz identifica que as regras necessárias são claras e não ciclópicas: (i) união bancária com seguro de depósitos comum; (ii) regras para limitar excedentes comerciais permanentes; (iii) mecanismos de mutualização da dívida; (iv) política monetária de largo espectro e não apenas centrada na estabilidade nominal dos preços; (v) políticas públicas europeias (sobretudo industrial) para reduzir desníveis de desenvolvimento e de produtividade entre o norte e o sul. Quanto à clareza estamos de acordo. Quanto à enormidade das mesmas, tudo é relativo e a posição alemã é de uma parede espessa e praticamente intransponível. A este lado do dilema, deveremos, como o faz Sandbu com pertinência, acrescentar a necessidade de evitar erros de política macroeconómica como os que conduziram a Europa a uma autoinfligida recessão económica em 2011-2012 enquanto o resto do mundo prosseguia uma trajetória de recuperação. Uma consolidação fiscal mais amiga do crescimento económico teria minimizado seriamente esta autoinfligida (mortificação punitiva pura e dura) recessão.

Os contributos de Stiglitz para a segunda opção do dilema são os que exigirão leitura mais atenta do livro. O economista americano fala de um euro dividido em dois, um euro mais forte a Norte e um euro mais soft a sul, que designa de “flexible-euro system” e avança até com a proposta de denominação das dívidas em euros em “Southern Euro debts”. Ora esta dimensão pia mais fino e será precipitado antecipar a leitura da obra.

De qualquer modo, é errado admitir que todos os economistas estão à margem do futuro das nossas vidas. Stiglitz não está de facto à margem, haja vontade para construir uma agenda em torno de posições desta envergadura.

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