domingo, 11 de setembro de 2016

O JUSTICEIRO AUSTERO E REMEDIADO DE MAÇÃO




(A entrevista do juiz Carlos Alexandre à SIC é inequivocamente um momento de televisão-chave para compreender a justiça portuguesa, e não há dúvida de que no melhor pano cai sempre uma nódoa)

Não sei se por pura coincidência ou por que carga de razão, após a visita do presidente Marcelo ao Departamento Central surge a público a entrevista do juiz Carlos Alexandre, juiz de primeira instância como o próprio com falsa modéstia procurou afastar algumas perguntas da jornalista da SIC sobre o seu futuro. E trata-se de uma peça documental de grande relevância política, construída metodicamente pelo próprio em tons tais que se o homem decidisse abraçar o comando de um partido populista no dia a seguir à entrevista teria a sua passadeira vermelha lançada pronta a ser pisada perante o entusiasmo dos que partilham os sentimentos do juiz.

A minha primeira interrogação diz respeito às razões da entrevista. Porquê agora, tendo em conta a imagem de autoafastamento e de apego rigoroso à causa que o juiz Carlos Alexandre tem conservado com resistência e pertinácia?

O juiz mapeou a entrevista com a reafirmação da sua austeridade, do seu apego workoólico ao trabalho, do seu isolamento pessoal e profissional, das privações a que se submete para levar o seu trabalho até ao fim, das suas profundas convicções religiosas, do seu retorno ao amor da terra que o viu nascer, do remedeio económico da sua vida face aos empréstimos que tem para pagar (as contas para pagar ao fim do mês explicam muita coisa, é certo), da resistência às ameaças que terá sido alvo e sobretudo do lastro de ruralidade austera e campestre que invocou repetidas vezes com a deixa do saloio de Mação. Posso assustar-me com estas características pessoais quando elas coexistem com posições de poder exorbitante, mas isso não chegaria para considerar muito grave a entrevista do juiz Carlos Alexandre. Certamente que na magistratura portuguesa essas características não são caso isolado. Mas numa entrevista em que o juiz terá negociado não falar dos grandes casos que tem entre mãos, a sua analógica referência pela negativa à situação que a imprensa tem disseminado do ex-primeiro ministro José Sócrates é malévola e inspira as maiores reservas. Por que carga de água o juiz por duas vezes teve necessidade de expressar que não tinha amigos que lhe emprestassem grossas quantias numa mais do que clara alusão às aludidas relações entre José Sócrates e o empresário Carlos Silva? Num processo em que não há sequer acusação, o que é que pode significar o juízo moral que marca aquela analogia, sobretudo quando contextualizada no quadro de uma entrevista em que o juiz acaba por fazer do seu quadro de vida impoluto, austero e remediado uma espécie de sistema de valores à luz do qual condena ou deixa de condenar?

Como é óbvio, a dupla utilização daquele chiste levanta todo um coro de suspeições sobre as razões que levam um bicho do buraco e fanático pelo seu trabalho a aparecer em público e para se mostrar aos portugueses. Será que vem aí uma acusação insegura e contraditória e o juiz pretende obter na opinião pública cobertura para os resultados insuficientes do seu trabalho? Ou será que o juiz está simplesmente a defender-se com uma onda de simpatia populista face ao número de cabeças que poderão rolar com a concretização dos processos que tem em mãos?

O recurso ao duplo chiste contra José Sócrates atribui todo um outro significado à afirmação dos valores pessoais e de vida que o juiz Carlos Alexandre quis transmitir com a entrevista. Como já me fiz compreender, considero que o segundo mandato de José Sócrates é uma verdadeira deriva de poder e tenho a intuição como muitos outros portugueses de que é na complexidade das relações de Sócrates com o BES e com a PT que iremos encontrar manifestações mais evidentes dessa deriva. Quanto ao sistema de valores que terão marcado a vida complexa de Sócrates estou-me nas tintas enquanto isso se mantiver na esfera estritamente privada. Do mesmo modo, bem pode o juiz Carlos Alexandre ser o austero mais remediado deste mundo que a única coisa que me interessa é se constrói acusações em função do rigor da investigação e da lei ou se, pelo contrário, deixa essa prática ser contaminada pela aversão que mantém face aos que assumem valores contrários aos seus.

Com o duplo chiste que deixou na entrevista, o juiz Carlos Alexandre abre toda uma série de vias possíveis, a maior parte das quais não é saudável para a justiça em democracia e passível de escrutínio político. O Presidente Marcelo vincou recentemente e na intervenção que poderá ter sido a menos cacofónica das suas tomadas de posição que é necessário os agentes da justiça, mesmo antes das forças partidárias, se movimentarem para um pacto de longo prazo na justiça. Com a sua entrevista, o juiz Carlos Alexandre abalroou seriamente as pretensões do Presidente.

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