quarta-feira, 14 de setembro de 2016

POBREZA E DESIGUALDADE

(Gravura que acompanha o artigo de Deirdre McCloskey no New York Times)



(À boleia de um debate que foi lançado pelo New York Times e se prolongou pelo Washington Post, a relação entre a pobreza e a desigualdade, entendidas como objeto prioritário ou complementar da ação política e da política económica, é uma questão central do nosso tempo e pela qual passa também a reinvenção da social-democracia e do socialismo)

Deirdre McCloskey lançou no início de setembro no sempre apelativo centro de debate que é o THE UPSHOT do New York Times (ver link aqui) as bases de um debate que transcende claramente os limites da sociedade americana e que é central a uma possível reinvenção da social-democracia ocidental e do socialismo democrático. McCloskey é uma economista do universo liberal americano, professora da Universidade de Illinois, Chicago, integrada no College of Liberal Arts, que tem a particularidade de ter mudado de género aos 55 anos, assumindo a partir desse momento o género feminino (Donald versus Deirdre) (ver aqui artigo do Wall Street Journal em que a economista se refere ao assunto e aqui o lugar que essa transição ocupa no seu CV). Tomei contacto com a obra de McCloskey sobretudo através dos seus ensaios sobre retórica e persuasão em economia, matéria que me fascina pois o modo como o conhecimento em economia é transmitido é hoje crucial para compreender as dificuldades de se encontrar um novo paradigma de política económica á altura dos desafios contemporâneos. O seu “The Rhetoric in Economics” de 1983, ainda Donald McCloskey, no Journal of Economic Literature está entre os artigos que considero marcantes na minha formação (ver link aqui).

O artigo de McCloskey no NYT pode ler-se como uma profissão de fé (a autora designa-se como uma cristã libertáriaI) nas virtudes da igualdade, da liberdade e da justiça para assegurar o enriquecimento progressivo do mundo e por essa via reduzir os níveis e a abrangência da pobreza para níveis mais do que aceitáveis. No seu discurso por vezes emblemático, McCloskey não hesita em escrever que “o importante não são os iates que a dona da L’Oréal Liliane Bettencourt possui mas antes que a média das mulheres francesas tenha que comer”. Nesse registo, McCloskey invoca para o seu argumento a série espantosa de melhorias de redução de pobreza que o crescimento económico, ainda que desigual pelo mundo, tendeu a assegurar. Sim, apesar das suas derivas, a globalização económica tendeu a reduzir substancialmente a pobreza, embora nessa matéria tenhamos de ponderar bem o efeito que a redução da pobreza na China provoca nesses números. O grande enriquecimento global é visto por McCloskey como o resultado da tríade igualdade, liberdade e justiça, associando a emergência do mundo moderno ao simples facto das pessoas terem começado a ser tratadas com mais respeito.

McCloskey não é uma economista qualquer, impõe respeito nas suas convicções e não deixa de ser salutar que, nos anos da desigualdade como tema (2015 com prolongamento para 2016 em termos de produção teórica e debate), apareça alguém, assumindo frontalmente que na relação entre pobreza e desigualdade a primeira é prioritária, centrando assim a relação causal entre crescimento económico e redução da pobreza.

O debate é quase tão velho como o é a própria economia política e tem no seu centro lógico o papel da distribuição em economia. E aqui há três posições que têm mantido uma conflitualidade desde tempos longos. Primeira: a distribuição não existe enquanto preocupação da ciência económica. Segunda: a distribuição existe e deve ser acrescentada como dimensão complementar e reguladora da alocação de recursos em mercado livre. Terceira: alocação de recursos e distribuição devem ser conjuntamente equacionadas no âmbito de uma abordagem global e diferentes modelos o têm ensaiado. A posição de McCloskey aproxima-se mais da primeira, embora não possa confundir-se com os economistas, também com origem intelectual em Chicago, que encaram a distribuição como uma tentação que faz mal à classe e a afasta dos padrões pseudocientíficos que defendem.

No debate de regulação de prioridades da política económica em torno da pobreza e da desigualdade, esta última tem ganho nos últimos anos uma maior notoriedade. Várias razões explicam essa mudança, mesmo num contexto global de aumento do rendimento médio das populações e de redução da pobreza na economia mundial. Primeiro, a desigualdade é apontada como uma das raízes do processo de estagnação secular que ameaça as economias avançadas. Segundo, o rigor científico da análise da desigualdade rivaliza hoje entre pares com as abordagens que a desvalorizaram. Terceiro, a perceção da desigualdade pelos mais desfavorecidos não é hoje neutra do ponto de vista dos seus posicionamentos em democracia, leia-se repercussão nos padrões de voto e oposição aos rumos da globalização. Quarto, há evidências cada vez mais seguras de que países mais desiguais não crescem tanto, penalizando por conseguinte o argumento de McCloskey.

Não espanta por isso que David Lay Williams, no Monkey Cage do Washington Post (ver link aqui) tenha vindo questionar o artigo de McCloskey, sublinhando que combater a pobreza não chega, combater a desigualdade é também imperioso e necessário. Ou que um insuspeito Robert Schiller Nobel pela sua análise da exuberância irracional dos mercados financeiros tenha também no THE UPSHOT defendido que “a desigualdade de hoje pode transformar-se na catástrofe de amanhã” (ver link aqui).

Na minha leitura, o desenvolvimento pode ser visto como uma função avaliativa de duas variáveis, a pobreza e a desigualdade, tendendo a gerar performances mais elevadas com redução de ambas. Mas o problema é que pobreza e desigualdade não são independentes entre si. Há vários mecanismos que o podem explicar. Mas pelo menos um é visível. Penalizando o crescimento económico, a desigualdade acaba por penalizar a redução da pobreza. Daí a preocupação por modelos de crescimento mais inclusivos, mas isso é conversa para outras charlas.

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